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Resumo
O presente artigo analisa o impacto do uso indiscriminado de dispositivos digitais entre crianças e adolescentes, caracterizando o fenômeno como uma nova epidemia invisível. Utilizando conceitos clássicos da epidemiologia, a análise relaciona o aumento de problemas de saúde mental e sociais à dependência de redes sociais e telas. São examinadas as recentes políticas públicas brasileiras, como a Lei n.º 15.100/2025 e o Guia “Crianças, adolescentes e telas: guia sobre uso de dispositivos digitais”, bem como as diretrizes do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que visam a reduzir a exposição digital e a fomentar práticas saudáveis de desenvolvimento infantil. Conclui-se pela urgência de enfrentar o problema com a mesma seriedade reservada a epidemias tradicionais, priorizando estratégias de prevenção, educação e proteção dos direitos infantojuvenis.
Palavras-chave: dependência digital; infância; saúde mental; políticas públicas; proteção infantojuvenil; redes sociais; direito da criança; epidemiologia social; educação digital; risco psicossocial.
INTRODUÇÃO
O avanço tecnológico dos últimos anos trouxe benefícios incontestáveis, mas também desafios imensos, especialmente no que se refere à exposição precoce de crianças e adolescentes às telas digitais. A utilização indiscriminada de celulares e dispositivos eletrônicos criou um ambiente propício ao desenvolvimento de problemas de saúde mental, dificuldades de interação social e queda no desempenho escolar.
Recentemente, importantes medidas legais e políticas públicas têm sido implementadas para enfrentar esse cenário. Entre elas, destacam-se a Lei n.º 15.100/2025, a publicação do Guia “Crianças, adolescentes e telas: guia sobre uso de dispositivos digitais”, pelo Governo Federal, e as resoluções do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).
Este artigo analisa essas iniciativas e discute o novo impulso que elas oferecem para transformar a realidade da infância e adolescência brasileiras.
A NOVA EPIDEMIA: REDES SOCIAIS COMO AGENTE DE RISCO
Sob o olhar da epidemiologia clássica, podemos considerar o fenômeno da dependência digital entre crianças e adolescentes como uma das novas epidemias moderna. O número de vítimas – jovens com prejuízos cognitivos, emocionais e sociais decorrentes do uso excessivo de telas – cresce diariamente.
O ‘agente etiológico’, aqui, é bem conhecido: o uso indiscriminado de redes sociais e dispositivos móveis. Contudo, assim como em novas epidemias, não há vacina nem antibiótico capaz de prevenir ou curar os danos imediatamente. Nesse sentido, entende-se que a única forma eficaz de enfrentamento é a intervenção comportamental e ambiental, com políticas públicas que reduzam a exposição e fomentem o uso consciente da tecnologia.
Assim, o problema assume os contornos clássicos de uma epidemia: aumento progressivo de casos, agente identificado, ausência de medidas farmacológicas de contenção.
A LEI N. 15.100/2025: UM MARCO PARA A SAÚDE ESCOLAR
Sancionada em janeiro de 2025, a Lei n.º 15.100 proíbe o uso de aparelhos eletrônicos nas escolas brasileiras, mesmo durante os intervalos. Essa medida rompeu, corajosamente, com a ideia de que o celular é indispensável em todos os ambientes. Ao contrário, evidenciou que seu afastamento do espaço escolar propicia melhor rendimento escolar, mais interação social entre alunos e professores, reduz conflitos e o isolamento, além de fortalecer a atenção plena no aprendizado.
Relatos iniciais do Ministério da Educação apontam para melhoras visíveis já no primeiro mês após a adoção da proibição. Esse resultado deu respaldo também aos pais, que passaram a sentir-se mais seguros para controlar e restringir o uso de dispositivos em casa.
O GUIA “CRIANÇAS, ADOLESCENTES E TELAS”: DIRETRIZES PARA FAMÍLIAS E ESCOLAS
A publicação de “Crianças, adolescentes e telas: guia sobre uso de dispositivos digitais”, pelo Governo Federal, em março de 2025, representa uma continuidade da política pública de enfrentamento ao uso indiscriminado de dispositivos digitais. Entre suas principais orientações, destacam-se:
- uso de telas apenas a partir dos 2 anos de idade (exceto para videochamadas com familiares);
- proibição de smartphones próprios para crianças menores de 12 anos;
- acompanhamento parental rigoroso do uso de telas por adolescentes de 12 a 17 anos;
- estímulo ao uso de tecnologias assistivas para crianças com deficiência;
- cautela no uso de dispositivos para fins pedagógicos, especialmente na primeira infância.
O documento também ressalta que a transformação só será efetiva se os adultos igualmente refletirem e adequarem seu próprio comportamento em relação às telas.
RESOLUÇÕES E RECOMENDAÇÕES DO CONANDA: PROTEÇÃO DA SAÚDE MENTAL
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), em suas resoluções e recomendações, fornece a base normativa para a proteção da infância contra os perigos do ambiente digital:
- Resolução n.º 113/2006: estabelece a proteção contra conteúdos prejudiciais à infância e adolescência;
- Resolução n.º 163/2014: proíbe a exploração comercial abusiva da imagem de crianças e adolescentes, incluindo o ambiente digital;
- Recomendações de 2023: reforçam a necessidade de políticas públicas que reduzam o tempo de exposição digital, promovam o uso consciente de tecnologias e incentivem pesquisas sobre os impactos do tempo de tela na saúde mental.
Esses documentos reforçam a urgência de medidas que equilibrem o uso das tecnologias e a proteção da infância e adolescência.
CONCLUSÃO: ENFRENTAR A EPIDEMIA INVISÍVEL
A cultura do uso indiscriminado de celulares e redes sociais dentro de casa começou a ser enfrentada de maneira consistente no Brasil, mas o desafio permanece imenso. As políticas recentes representam um movimento efetivo para resgatar a infância real – a infância da interação humana, da brincadeira física e da convivência social saudável.
Reconhecer o uso abusivo das telas como uma epidemia invisível permite que sociedade e Estado adotem estratégias de enfrentamento mais organizadas, contínuas e eficazes, como ocorre em crises sanitárias tradicionais. Assim como em outras epidemias, o agente etiológico é conhecido, mas ainda não há vacina ou tratamento medicamentoso que resolva o problema: a solução exige prevenção, educação e mudança cultural.
O perigo silencioso dentro de casa – o excesso de exposição digital – agora está claramente mapeado e precisa ser tratado com a mesma seriedade que conferimos a outros riscos à saúde pública.
Mais do que nunca, proteger nossas crianças e adolescentes exige coragem para enfrentar essa epidemia invisível e promover um futuro mais saudável, humano e equilibrado.
MATERIAL CONSULTADO
BRASIL. Lei n.º 15.100, de 13 de janeiro de 2025. Dispõe sobre a proibição do uso de aparelhos eletrônicos em escolas. Brasília, DF: Presidência da República, [2025]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2025/lei/l15100.htm. Acesso em: 17 maio 2025.
BRASIL. Ministério da Educação. Crianças, adolescentes e telas: guia sobre uso de dispositivos digitais. Brasília, DF: MEC, 2025. Disponível em: https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/uso-de-telas-por-criancas-e-adolescentes/guia/guia-de-telas_sobre-usos-de-dispositivos-digitais_versaoweb.pdf. Acesso em: 17 maio 2025.
CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Recomendações sobre saúde mental e impacto digital. Brasília, DF: Conanda, 2023.
CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Resolução n.º 113, de 19 de abril de 2006. Define os parâmetros para a institucionalização e funcionamento dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente. Brasília, DF: Conanda, 2006. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/conselho-nacional-dos-direitos-da-crianca-e-do-adolescente-conanda/resolucoes/resolucao-no-113-de-19-04-06-parametros-do-sgd.pdf/view. Acesso em: 17 maio 2025.
CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Resolução n.º 163, de 13 de março de 2014. Dispõe sobre a abusividade do direcionamento de publicidade e comunicação mercadológica à criança e ao adolescente. Brasília, DF: Conanda, 2014. Disponível em: https://site.mppr.mp.br/crianca/Pagina/Resolucao-CONANDA-no-1632014-de-13-de-marco-de-2014. Acesso em: 17 maio 2025.
LAST, J. M. (ed.). A dictionary of epidemiology. 4. ed. New York: Oxford University Press, 2001.
PORTAL BRASIL. Ministério da Saúde. Conceito de epidemia. Disponível em: https://www.gov.br/saude/epidemia. Acesso em: 8 maio 2025.
Autora: Dra. Vera Lucia Gomes de Andrade, médica Epidemiologista aposentada da Organização Mundial da Saúde (OMS) e Sanitarista da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro (SESRJ), especializada em Saúde Pública (RQE 48531), Hansenologia (RQE 41306) e Doenças Infecto-Parasitárias (RQE 694), com mestrado e doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz. Membro do Conselho Nacional dos Peritos Judiciais da República Federativa do Brasil – Telefone: (21) 985 31 31 34