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Para peritos e assistentes técnicos que participam de disputas judiciais ou investigações, o atestado de óbito é um ponto de partida essencial. Ele permite verificar os achados registrados durante a necropsia e orienta a necessidade de exames complementares para a elaboração do laudo pericial. O documento é frequentemente utilizado em processos de responsabilidade civil ou criminal para estabelecer o nexo causal entre o ato violento e o resultado morte.
Nos casos de mortes violentas, a atuação do médico legista na emissão do atestado de óbito vai além de um procedimento administrativo, exigindo uma avaliação técnica especializada para determinar as causas e fatores que contribuíram para o óbito. Ao contrário das mortes naturais, em que o atestado pode ser emitido por qualquer médico, os casos de violência exigem um exame mais detalhado para identificar não apenas a causa da morte, mas também a dinâmica dos eventos e possíveis indícios de crimes.
O atestado é emitido por um médico legista do Instituto Médico-Legal (IML), que realiza uma necropsia para analisar o corpo internamente e externamente, em busca de evidências como lesões, traumas, sinais de asfixia, intoxicações ou marcas de defesa. Exames complementares, como toxicologia, histopatologia ou balística, podem ser necessários, dependendo das circunstâncias do caso, para esclarecer se o óbito foi intencional, acidental ou decorrente de ato violento, intencional ou não, ou mesmo de atentado contra sua própria vida.
A emissão do atestado de óbito em mortes violentas requer precisão na descrição das causas, incluindo a imediata (condição que causou a morte), intermediária (fatores que contribuíram para o quadro) e a básica (circunstância original que desencadeou o evento). Essa documentação é fundamental para investigações policiais, processos judiciais e decisões administrativas, ajudando a validar inquéritos criminais, concessões de seguros e indenizações, além de orientar políticas de segurança pública.
O papel do atestado de óbito é crucial para a investigação de mortes violentas, podendo influenciar diretamente o rumo das investigações, ajudando a esclarecer a dinâmica do crime e identificar responsáveis. A análise técnica do corpo e dos fatores associados à morte podem confirmar ou refutar hipóteses das autoridades.
Em certos contextos, o preenchimento do atestado apresenta desafios particulares que exigem atenção do legista. Alguns exemplos incluem:
– Violência doméstica: Identificar lesões repetidas ou sinais de abuso prévio é essencial para comprovar histórico de agressões. O legista deve diferenciar entre ferimentos antigos e recentes e buscar evidências de violência crônica, como fraturas cicatrizadas, que podem indicar um padrão de abuso.
– Custódia policial ou operações de segurança: O legista deve documentar minuciosamente quaisquer sinais de uso excessivo de força, como marcas de asfixia, contusões ou fraturas, que possam sugerir abuso. Manter a imparcialidade é essencial, especialmente diante de possíveis pressões externas para validar uma versão oficial dos eventos.
– Acidentes de trabalho: Nos casos de fatalidade no ambiente laboral, o legista precisa identificar se o acidente resultou de falhas de segurança, condições perigosas ou falta de equipamentos adequados. Exames específicos, como análise de substâncias tóxicas no corpo, podem ser necessários para determinar se houve exposição a materiais nocivos.
O legista deve preencher o atestado com rigor e imparcialidade, garantindo que as informações reflitam fielmente os achados periciais. Qualquer erro, omissão ou tentativa de distorcer os fatos pode ter graves consequências, não apenas para a investigação criminal, mas também para os familiares, que podem enfrentar dificuldades para obter justiça ou compensação.
Além de seu papel na justiça, o atestado de óbito é vital para a coleta de dados sobre violência. Estatísticas precisas são essenciais para identificar padrões de criminalidade, orientar políticas públicas e desenvolver medidas preventivas. O compromisso ético do médico legista com a qualidade dos registros é, portanto, crucial para que as estatísticas reflitam a realidade e apoiem ações baseadas em evidências.
A emissão do atestado de óbito em casos de mortes violentas exige precisão técnica, compromisso com a ética e responsabilidade social. O trabalho do médico legista é determinante para garantir que o documento seja mais do que uma formalidade, servindo como base para investigações criminais e decisões judiciais. O atestado não apenas atesta o fim de uma vida, mas também sustenta a busca pela verdade e a promoção da justiça.
Referência bibliográfica:
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Autora: Dra. Vera Lucia Gomes de Andrade é médica, Epidemiologista da Organização Mundial da Saúde (OMS) e Sanitarista da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro (SESRJ). Especializada em Saúde Pública (RQE 48531), Hansenologia (RQE 41306) e Doenças Infecto-Parasitárias (RQE 694), com mestrado e doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz. Membro do Conselho Nacional dos Peritos Judiciais da República Federativa do Brasil.