(imagem IA)
O artigo propõe uma reflexão crítica sobre a controvérsia quanto à manutenção do plano de saúde coletivo após a extinção do vínculo empregatício e os impactos para as partes envolvidas. Analisa-se os principais fundamentos adotados pelos tribunais em ações que discutem o direito à permanência no plano, mesmo após o fim da relação de trabalho, à luz da essencialidade do serviço e da vulnerabilidade do consumidor. A discussão se ancora no julgamento do REsp nº 2.097.609/RJ, de relatoria do ministro Humberto Martins, e visa provocar uma reflexão sobre o tema, fomentando o diálogo das fontes como instrumento de aprimoramento da tutela dos direitos dos consumidores.
Da proteção da saúde e a harmonização dos interesses nas relações de consumo
O Brasil conta com mais de 52 milhões de usuários da saúde suplementar, segundo a ANS (2025), o que corresponde a um quarto da população, conforme o IBGE. Desde 2020, são cerca de 4,5 milhões de novos beneficiários, sendo mais de 83% vinculados a planos coletivos. Atualmente, são 43,4 milhões nesses planos: 37,6 milhões empresariais e 5,8 milhões por adesão, muitos deles “falsos coletivos” ou “coletivos atípicos”. Os planos individuais somam apenas 8,6 milhões, em queda constante, diante da concentração de mercado e da ausência de obrigatoriedade na oferta.
A perda involuntária do vínculo empregatício agrava essa vulnerabilidade, tornando a contratação de novo plano um desafio. Desde a Lei nº 9.656/98, operadoras adotam estratégias restritivas frente ao dirigismo contratual imposto pelos Tribunais, com base na dignidade da pessoa humana, boa-fé e função social do contrato.
Como lembra Bulos, a dignidade da pessoa humana é o alicerce do sistema constitucional. José Afonso da Silva a define como um princípio que reúne todos os direitos fundamentais. Cláudia Lima Marques vê a Constituição como “centro irradiador” de um direito privado mais social e voltado aos vulneráveis , enquanto Bruno Miragem destaca a vulnerabilidade como cláusula geral de tutela da dignidade no CDC .
Consolidou-se a compreensão da necessidade de análise sistemática do direito, com base na teoria do diálogo das fontes (artigo 7º do CDC), que permite a leitura conjunta com outras normas. O ministro João Otávio Noronha, em artigo sobre a crise entre fontes normativas, destaca que a abusividade prevista no CDC é mais ampla e visa à proteção efetiva do consumidor hipossuficiente .
O reconhecimento da vulnerabilidade dos beneficiários foi um marco no combate a abusos. A escassez de planos individuais decorre, em parte, da omissão regulatória da ANS, da limitação nos reajustes e da vedação à rescisão unilateral imotivada.
Embora os planos existam desde a década de 1960, só em 1998 foi sancionada a Lei nº 9.656, que regula os planos privados de saúde, considerados contratos cativos de longa duração , submetidos ao CDC (Súmula 608 do STJ).
A regulação das relações privadas é imperativa (artigos 5º, XXXII, e 170 da CF/88). A ANS, criada pela Lei nº 9.961/00, tem por função normatizar e fiscalizar a saúde suplementar, conforme ensina Vinicius Calado . Deveria assegurar equilíbrio e liberdade de escolha (artigo 6º do CDC), mas o que se vê é um mercado concentrado e desequilibrado. Diante da perda do vínculo empregatício, consumidores enfrentam dificuldade para manter o plano, o que justifica esta reflexão.
Multiplicam-se litígios diante da ausência de alternativas viáveis. Com a demissão ou aposentadoria, o beneficiário perde o vínculo com o plano coletivo e ficando exposto à migração para produtos inferiores, com novas carências e risco de desassistência.
Do direito de manutenção contratual após a extinção do vínculo por demissão sem justa causa ou aposentadoria da pessoa contributária
Após o desligamento, ex-empregados frequentemente perdem o acesso ao plano coletivo, mesmo manifestando a intenção de arcar integralmente com os pagamentos. Cada vínculo empregatício envolve formas distintas de custeio: integral pelo empregador, coparticipação ou divisão das mensalidades. Apenas os que contribuíram com parte da mensalidade — os chamados contributários — têm garantido o direito de manutenção contratual, nos termos dos artigos 30 e 31 da Lei nº 9.656/98, regulamentados pela RN nº 488/2022 da ANS.
Quando a cobertura é custeada integralmente pelo empregador, mesmo com coparticipação apenas sobre os serviços utilizados, não há direito à continuidade, conforme entendimento do STJ no Tema 989 e no AgInt nos EREsp 1.688.854/SP (julgado em 28/05/2024).
O critério central é a comprovação de contribuições financeiras regulares e sucessivas, independentemente do valor ou percentual pago. Negar a permanência de quem deseja manter o contrato e assumir os custos, diante do direito à saúde (artigo 6º da CF e artigo 25 da Declaração Universal de Direitos Humanos), viola a dignidade da pessoa humana, fomenta seleção adversa e configura abuso de poder econômico e contratual.
Da análise do julgamento do REsp nº 2.097.609/RJ
O REsp nº 2097609/RJ evidencia os conflitos entre operadoras, empregadores e ex-empregados demitidos ou aposentados. No caso em análise, a consumidora contribuiu por mais de 28 anos até ser demitida sem justa causa em 2018, a menos de dois anos da aposentadoria. Após o desligamento, manifestou intenção de arcar com as mensalidades, mas foi excluída do plano em abril de 2020, no início da pandemia da Covid-19, sem opção de portabilidade.
Proposta ação de obrigação de fazer, teve a liminar indeferida com base na interpretação literal do art. 30, §1º, desconsiderando as peculiaridades do caso. Embora tenha obtido tutela recursal, a sentença julgou improcedente o pedido, desconsiderando que a aposentadoria ocorreu dentro do prazo de 24 meses após a demissão, preenchendo os requisitos do artigo 31.
O TJ-RJ reformou a decisão, reconhecendo o direito da consumidora e de seu dependente à manutenção contratual, diante das contribuições ininterruptas, do adimplemento substancial e do direito adquirido pela aposentadoria, destacando a violação aos deveres de boa-fé e proteção ao consumidor.
O STJ, em precedentes como os REsps 1.371.271, 1.431.723/SP e 1.305.861/RS, tem assentado que não é necessário que a aposentadoria ocorra durante o vínculo empregatício, bastando o preenchimento dos requisitos legais na solicitação. A interpretação ampliativa, alinhada à proteção da dignidade da pessoa humana e à função social do contrato, tornou-se diretriz essencial na proteção dos hipervulneráveis que contribuíram por décadas.
A interpretação literal no REsp 2097609 levou a um tratamento desigual em situação equivalente. A norma busca proteger o aposentado, geralmente idoso e sem acesso a planos compatíveis, seja pela idade, seja pelos custos.
Deveria ter sido assegurada a migração para outra modalidade com a mesma operadora. Luis Alberto Warat já alertava que o Direito não cumpre seu papel democrático se ignora o valor positivo do conflito .
Nesse contexto, destaca-se ainda o Tema 1.034 do STJ, que reconheceu o direito do aposentado a permanecer no mesmo plano dos empregados ativos, com igualdade de condições, permitindo variação apenas por faixa etária.
No mesmo sentido, o ministro Sidnei Beneti, no REsp 1.431.723/SP, defendeu a aplicação ampliativa do art. 31, assegurando que o benefício alcança os aposentados que atingiram o benefício durante a vigência do vínculo empregatício. Josiane Gomes também ressalta o caráter existencial dos contratos de saúde, marcados pela tensão entre o interesse patrimonial das operadoras e os direitos fundamentais dos usuários .
A omissão da ANS agrava esse quadro, ao não regular efetivamente os planos coletivos empresariais, permitindo práticas abusivas como exclusões discriminatórias e o rompimento de contratos de longa duração.
Doutrina e jurisprudência convergem no sentido de que a proteção à saúde exige releitura normativa à luz dos princípios constitucionais, do dever de confiança e da vedação ao abuso de direito. Como afirmou o ministro Marco Aurélio (ADI 1.931/DF), mesmo na esfera privada, o serviço de saúde não pode se submeter apenas à lógica do lucro.
Conclusão
A adequada solução dos conflitos nos planos de saúde exige técnica jurídica sensível à hipervulnerabilidade dos consumidores. Este artigo propôs uma reflexão sobre a interpretação das fontes normativas, ressaltando o diálogo das fontes e a função social dos contratos.
Consumidores aposentados e demitidos sem justa causa têm direito à manutenção contratual se assumirem o pagamento integral e preencherem os requisitos legais. O interesse econômico das operadoras não pode se sobrepor à proteção constitucional da saúde e à dignidade da pessoa humana.
O mercado concentrado e a escassez de planos individuais intensificam a vulnerabilidade dos usuários, exigindo interpretação finalística da legislação. O REsp 2097609/RJ ilustra a importância da tutela judicial para garantir a continuidade dos contratos de longa duração, sobretudo em favor de idosos e aposentados.
O reconhecimento da hipervulnerabilidade e a aplicação efetiva do diálogo das fontes são essenciais para assegurar a proteção dos consumidores e impedir práticas abusivas e discriminatórias no setor de saúde suplementar.
Fonte: CONJUR – autores: Thiago Loyola e Joaquim Pessoa Guerra Filho