Direito MédicoNEGATIVA DE COBERTURA DE CANABIDIOL PELAS OPERADORAS DE SAÚDE

23 de julho de 20250

123RF

O debate sobre os limites da cobertura oferecida pelos planos de saúde no Brasil ganhou um novo e controverso capítulo com a recente decisão da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. No julgamento de um recurso especial, o colegiado proveu o recurso de uma operadora para desobrigá-la de fornecer um medicamento à base de canabidiol, prescrito para uma beneficiária com transtorno do espectro autista, sob o fundamento de se tratar de fármaco para uso domiciliar e ausente no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS.

Com a devida vênia ao Egrégio Tribunal da Cidadania, o presente artigo sustenta que tal decisão, ao se apegar a uma hermenêutica excessivamente restritiva, padece de equívocos que merecem análise aprofundada. A tese aqui defendida é a de que a interpretação adotada pelo STJ não apenas frustra a legítima expectativa do consumidor e a finalidade precípua do contrato de saúde, mas também se encontra em descompasso com a evolução legislativa sobre a matéria e, fundamentalmente, com a interpretação constitucional do direito à saúde consolidada pelo Supremo Tribunal Federal.

Para demonstrar este ponto, o artigo foi estruturado em eixos centrais que abrangem: (1) a análise da interpretação literal da Lei nº 9.656/1998; (2) a força normativa da Constituição e a jurisprudência do STF; (3) a necessária aplicação analógica de entendimentos do STF sobre o dever do Estado; (4) a divergência jurisprudencial interna no próprio STJ; (5) a tentativa de uniformização pela 2ª Seção; e (vi) os argumentos basilares que sustentam a tese da cobertura obrigatória.

Interpretação restritiva da Lei nº 9.656/1998 e o esvaziamento da finalidade contratual

O fundamento central da decisão da 3ª Turma repousa na leitura conjugada de dois dispositivos da Lei dos Planos de Saúde. Primeiramente, o artigo 10, inciso VI, que estabelece que o fornecimento de medicamentos para tratamento domiciliar não integra a cobertura obrigatória. Em segundo lugar, o parágrafo 13 do mesmo artigo, que, embora autorize a cobertura de tratamentos não listados no rol da ANS, não teria, segundo o voto da relatora, ministra Nancy Andrighi, o condão de superar a regra geral de exclusão do uso domiciliar. A relatora ponderou que “a intenção do legislador, desde a redação originária da Lei 9.656/1998, é a de excluir medicamentos de uso domiciliar da cobertura obrigatória imposta às operadoras de planos de saúde”.

Esta lógica, embora formalmente coerente, ignora a natureza sinalagmática e, sobretudo, a função social do contrato de assistência à saúde. A sua finalidade última é a garantia da saúde e da vida do beneficiário, e não a mera gestão de risco financeiro da operadora. A recusa de um tratamento essencial, prescrito por um médico como o mais adequado para a condição do paciente, esvazia o próprio objeto do contrato, tornando-o inócuo.

Ademais, a própria jurisprudência do STJ revela a fragilidade dessa distinção ao admitir a cobertura em cenários análogos, como nos casos em que o medicamento, embora domiciliar, é ministrado em regime de internação domiciliar que substitua a hospitalar ou exige “supervisão direta de profissional de saúde habilitado”. Tal diferenciação cria uma situação de profunda iniquidade: o direito a um tratamento vital passa a depender de um detalhe logístico-administrativo, e não da necessidade clínica do paciente, violando o princípio da isonomia.

Força normativa da Constituição e a jurisprudência do STF como vetores interpretativos

Qualquer interpretação da legislação infraconstitucional deve, necessariamente, ser filtrada pela Constituição Federal. A decisão da Terceira Turma, ao se concentrar na letra da Lei nº 9.656/1998, falha em realizar uma interpretação conforme a Constituição. O Supremo Tribunal Federal possui jurisprudência pacífica e robusta no sentido de que o direito à saúde (art. 196, CF) é um direito fundamental de aplicação imediata e um dever do Estado, devendo-se conferir “máxima efetividade” a esta norma.

A saúde, como pilar do “mínimo existencial”, não pode ser suplantada por interesses de natureza puramente econômica ou por cláusulas contratuais restritivas. A recusa da operadora, validada pelo STJ, representa uma barreira de acesso que, na prática, nega a própria essência do direito à saúde para a beneficiária. A interpretação da lei ordinária deve buscar a concretização, e não a restrição, dos direitos fundamentais.

Rol da ANS pós-Lei 14.454/2022 e o paralelo com o Tema 500 do STF

A Lei nº 14.454/2022, que alterou a Lei nº 9.656/1998 para estabelecer critérios que permitem a cobertura de tratamentos fora do rol da ANS, foi uma clara opção política do legislador para superar a tese do rol taxativo. A decisão da Terceira Turma, ao criar um obstáculo adicional (o uso domiciliar) para a aplicação desta norma, atua de forma a enfraquecer a vontade legislativa, que visava justamente ampliar a proteção do consumidor.

Neste ponto, é crucial traçar um paralelo com o que o STF decidiu no Tema 500 de Repercussão Geral (RE 657718). Ao julgar o dever do Estado de fornecer medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS, a Suprema Corte fixou que as listas administrativas não são absolutas e devem ceder diante da comprovação da imprescindibilidade do tratamento. A ratio decidendi do precedente é a de que a burocracia estatal não pode se sobrepor ao direito à vida e à saúde.

Ainda que as operadoras de saúde sejam entes privados, elas prestam um serviço de relevância pública em um mercado fortemente regulado, integrando o sistema de saúde em caráter suplementar. Portanto, a mesma lógica deve ser aplicada por analogia. Se o próprio Estado não pode se escudar em uma lista para negar tratamento essencial, não parece razoável conferir tal poder a uma entidade privada, cuja obrigação decorre de um contrato oneroso que tem por objeto, precisamente, a cobertura de riscos à saúde.

Divergência jurisprudencial interna no STJ

Cumpre salientar que a tese sufragada pela 3ª Turma, objeto central da presente crítica, não representa um entendimento pacífico no âmbito do Superior Tribunal de Justiça. Pelo contrário, ela expõe uma notória divergência com o posicionamento da 4ª Turma, órgão igualmente competente para o julgamento de matérias de direito privado.

Conforme exposto, a 3ª Turma adota uma postura mais restritiva, apegando-se à exclusão legal do tratamento domiciliar e à intenção original do legislador, tendo reafirmado tal posição em mais de uma oportunidade. Em contrapartida, a Quarta Turma desenvolveu uma linha jurisprudencial mais protetiva ao consumidor, priorizando a indicação do médico assistente e a função social do contrato. Para este colegiado, a recusa de um tratamento essencial prescrito pelo profissional de saúde é, em regra, considerada abusiva, mitigando-se o rigor da cláusula de exclusão domiciliar em prol da garantia à saúde.

Este dissídio resulta em grave insegurança jurídica, fazendo com que o direito de um mesmo cidadão a um tratamento possa variar drasticamente a depender da distribuição de seu recurso entre um colegiado ou outro.

Tentativa de uniformização pela 2ª Seção e seus reflexos

Tal dissídio notório entre os colegiados levou a matéria à apreciação da Segunda Seção, órgão incumbido de uniformizar a jurisprudência das turmas de direito privado. No julgamento dos Embargos de Divergência no Recurso Especial (EREsp) 1.895.659, o órgão uniformizador debruçou-se sobre a controvérsia do tratamento domiciliar.

Na ocasião, a Segunda Seção firmou o entendimento de que a regra é, de fato, a não cobertura do tratamento domiciliar, exceto se previsto em contrato. Contudo, estabeleceu um critério objetivo fundamental: a cobertura será compulsória quando o tratamento, ainda que domiciliar, demandar a “intervenção ou supervisão direta de profissional de saúde habilitado”.

Este precedente, embora não tenha versado especificamente sobre o canabidiol, estabelece um critério que passa a nortear a solução de casos futuros e busca pacificar a questão. A análise, portanto, desloca-se de uma discussão puramente de direito para uma questão também fática: a administração do canabidiol prescrito ao paciente demanda, para sua segurança e eficácia, a supervisão direta de um profissional? A resposta a esta indagação, caso a caso, passou a ser o divisor de águas para a determinação da obrigatoriedade de cobertura, segundo a jurisprudência hoje consolidada na Seção.

Tese da cobertura obrigatória sob o prisma constitucional e da boa-fé objetiva

Não obstante a complexidade da hermenêutica infraconstitucional e os esforços de uniformização do STJ, uma análise dogmática aprofundada revela um conjunto de argumentos sólidos e irrefutáveis que fundamentam o dever de cobertura do canabidiol de uso domiciliar, os quais devem prevalecer em qualquer ponderação judicial. Tais argumentos transcendem a literalidade da lei e encontram amparo direto na Constituição Federal e nos pilares do direito privado contemporâneo.

Supremacia da Constituição e a eficácia horizontal dos direitos fundamentais

O argumento primordial é de natureza constitucional. O direito à vida (artigo 5º, caput) e o direito à saúde (artigo 196) são o ápice de nosso ordenamento jurídico. A recusa de um tratamento essencial prescrito por médico, especialmente quando outras terapêuticas se mostraram ineficazes, representa uma violação direta a esses direitos. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é pacífica ao reconhecer a “eficácia irradiante” e a “eficácia horizontal” dos direitos fundamentais, o que significa que eles não se aplicam apenas na relação entre o cidadão e o Estado, mas também permeiam e vinculam as relações privadas, como os contratos de plano de saúde. Portanto, nenhuma cláusula contratual ou interpretação de lei ordinária pode prevalecer quando seu resultado prático é a anulação de um direito fundamental.

Violação da boa-fé objetiva e a frustração do fim do contrato

O contrato de plano de saúde é regido pelo Código de Defesa do Consumidor e pelo princípio da boa-fé objetiva (art. 422, Código Civil). Ao contratar, o beneficiário nutre a legítima e justa expectativa de que, em caso de enfermidade, terá acesso ao tratamento necessário para sua cura ou melhora de sua qualidade de vida. A recusa da operadora, após anos de pagamento da contraprestação, com base em uma cláusula de exclusão genérica (uso domiciliar), configura comportamento contraditório (venire contra factum proprium) e frustra o fim social do contrato. A operadora não pode se portar como mera gestora de mutualidade financeira, mas como garantidora da saúde, que é a sua promessa e o objeto de sua atividade econômica.

Direito à terapêutica adequada e o ato médico

O direito à saúde desdobra-se no direito do paciente de ter acesso não a qualquer tratamento, mas à terapêutica mais adequada e eficaz para sua condição, conforme prescrição do profissional médico que o acompanha. A operadora de saúde não possui competência técnica para questionar a pertinência de uma prescrição médica. Ao negar a cobertura do canabidiol, ela não está apenas aplicando uma cláusula contratual, mas se imiscuindo indevidamente no ato médico e substituindo o critério científico pelo critério puramente econômico-administrativo, o que é inadmissível.

Interpretação teleológica da lei e vedação ao retrocesso

A Lei nº 14.454/2022, que sacramentou a natureza exemplificativa do rol da ANS, teve um propósito claro: ampliar o acesso e coibir negativas abusivas. Uma interpretação que utiliza outra cláusula (a de exclusão domiciliar) para anular este avanço legislativo é anti-teleológica, ou seja, vai contra o espírito e a finalidade da lei. Ademais, o STF consagra o princípio da vedação ao retrocesso social, segundo o qual, uma vez alcançado um determinado patamar de proteção de um direito social como a saúde, o legislador (e, por extensão, o intérprete) não pode agir de modo a suprimir ou reduzir essa proteção sem oferecer uma contrapartida ou uma justificativa de excepcional magnitude. A negativa de cobertura, neste contexto, configura um claro retrocesso na proteção ao consumidor de planos de saúde.

Estes argumentos, em conjunto, formam uma muralha jurídica que demonstra que o dever de cobertura do canabidiol, quando devidamente prescrito como essencial à saúde do paciente, não é uma liberalidade, mas uma obrigação jurídica, ética e constitucional.

Conclusão

Diante do exposto, e mesmo considerando o esforço de uniformização da Segunda Seção, conclui-se que a decisão da 3ª Turma aqui analisada, em sua essência, representa um precedente que merece ser superado. Ao se ater a uma interpretação literal e histórica da lei, ela se afasta dos princípios constitucionais da dignidade humana e do direito à saúde, colide com a teleologia do Código de Defesa do Consumidor e cria distinções que carecem de razoabilidade.

O critério de “supervisão profissional” estabelecido pela Segunda Seção, embora represente um avanço ao criar uma regra objetiva, ainda pode se mostrar insuficiente para proteger pacientes cujo tratamento, mesmo sendo autoadministrado, é a única esperança terapêutica. A discussão de fundo, de índole constitucional, permanece.

Urge que a jurisprudência evolua para um patamar que reconheça a essencialidade do tratamento prescrito como o fator determinante, em alinhamento com a robusta proteção ao direito à vida e à saúde que emana de nossa Constituição Federal e da jurisprudência de vanguarda do Supremo Tribunal Federal.

Fonte: CONJUR – artigo do Dr. José Marco Tayah, advogado

 

 

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