Direito MédicoENTRE DIREITOS E DILEMAS – SUS E SNS NO ACESSO UNIVERSAL À SAÚDE – ALTA COMPLEXIDADE E A INCLUSÃO DE MIGRANTES

30 de julho de 20250

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Uma análise jurídico-comparada entre os modelos públicos de saúde do Brasil e de Portugal, com foco nos direitos dos migrantes, cobertura de alta complexidade e limites da universalidade.

  1. Introdução

A saúde pública, um direito fundamental, integra o núcleo duro da dignidade humana, sendo garantida pela Constituição da República Federativa do Brasil (art. 6º e art. 196) e pela Constituição da República Portuguesa (art. 64.º). Nos dois países, a saúde é assegurada por sistemas públicos, universais e financiados com recursos estatais: o Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil e o Serviço Nacional de Saúde (SNS) em Portugal.

Ambos os sistemas são projetados para garantir a totalidade do cuidado em saúde – da atenção primária à medicina de alta complexidade –, sem custo direto ao cidadão. Isso inclui não apenas nacionais, mas estrangeiros em situação regular ou irregular, conforme estabelecido pela legislação brasileira (Lei nº 13.445/2017) e pela normativa portuguesa (Portaria n.º 25.360/2001).

Contudo, a generosidade constitucional desses modelos convive com contradições práticas: superlotação, judicialização, desigualdade regional e dificuldade de acesso a medicamentos de alto custo. Este artigo explora essas tensões, com especial atenção ao acesso dos migrantes, à cobertura de alta complexidade e às implicações jurídico-sanitárias da inclusão social.

  1. Sistemas Universais: Muito Além do Básico

Ao contrário da noção reducionista de serviços “mínimos”, SUS e SNS oferecem:

  • Transplantes  (Brasil é líder mundial em transplantes pelo sistema público).
  • Tratamento oncológico integral (radioterapia, quimioterapia, imunoterapia).
  • Medicamentos de altíssimo custo, como nusinersena para a Atrofia Muscular Espinhal (AME) e eculizumabe para a Hemoglobinúria paroxística noturna (HPN).
  • Neurocirurgias, hemodiálise e terapias complexas para doenças raras.

No setor privado, tais tratamentos ultrapassam a capacidade de pagamento até da classe média com seguro de saúde. No SUS e no SNS, são direitos públicos gratuitos.

  1. Migrantes e o Direito à Saúde

3.1 Brasil

O Brasil garante o acesso pleno ao SUS a todos os residentes, inclusive estrangeiros em situação irregular. A Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017, art. 4º, §1º) assegura aos imigrantes os mesmos direitos sociais dos nacionais. A Portaria MS nº 940/2011 reforça esse entendimento, vedando a exigência de documentos migratórios para o acesso ao SUS.

Segundo dados do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) e da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), o Brasil abrigava, em 2024, mais de 1,5 milhão de imigrantes, incluindo 500 mil venezuelanos, além de haitianos, sírios e cubanos. Estima-se que 790 mil estejam em situação de deslocamento forçado (Migration Policy Institute, 2024).

3.2 Portugal

Em Portugal, o direito à saúde dos migrantes é regulamentado pela Portaria n.º 25.360/2001 e pelo Decreto-Lei n.º 135/2013. Mesmo estrangeiros em situação documental irregular têm direito a atendimento no SNS. Refugiados e solicitantes de asilo têm direito à isenção de taxas moderadoras.

Dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) revelam que em 2023, Portugal possuía 1.044.606 residentes estrangeiros, representando 9,8% da população. Em 2024, esse número saltou para 1,55 milhão, equivalente a cerca de 15% da população residente. As principais nacionalidades incluem brasileiros (368.449), angolanos, cabo-verdianos, indianos, nepaleses, ucranianos e paquistaneses (SEF, 2024).

  1. Altos Custos, Alta Complexidade e o Direito

Ambos os países ofertam, via seus sistemas públicos:

  • Internações em UTI neonatal e adulta;
  • Cirurgias cardíacas complexas e transplantes;
  • Medicamentos oncológicos e para doenças raras;
  • Protocolos clínicos para condições de alta morbidade.

Contudo, a realidade impõe desafios:

  • Judicialização no Brasil: entre 2022 e 2024, mais de 2 milhões de ações judiciais versaram sobre fornecimento de medicamentos e tratamentos não ofertados administrativamente (CNJ, 2024).
  • Custo-efetividade em Portugal: o INFARMED, agência reguladora, limita a oferta de terapias ultracaras baseando-se em análises econômicas, o que exclui doenças raras ou medicamentos órfãos.
  1. Sistemas Privados: Complementaridade ou Segregação?

Embora universais, Sistema Único de Saúde (SUS) e  Serviço Nacional de Saúde (SNS) coexistem com o setor privado:

  • No Brasil, 25% da população tem plano de saúde, mas recorre ao SUS para transplantes e terapias caras.
  • Em Portugal, há crescimento dos seguros complementares, usados para driblar filas.

Essa coexistência pode gerar dualização no acesso, violando o princípio da equidade.

  1. Direito Sanitário Internacional: SUS e SNS são exceções?

Diversos países adotam sistemas universais semelhantes:

País Modelo Gratuito no Acesso Destaques
Reino Unido NHS Sim Sistema-mãe do SNS
Canadá Medicare Parcial (hospitais) Administração provincial
Itália SSN Sim Financiamento central e regional
Espanha SNS Sim Forte atenção primária
Suécia Sistema regionalizado Parcial Copagamento com teto anual

O SUS é o maior sistema público universal do mundo em um país de renda média, com cobertura superior a 150 milhões de pessoas. Sua escala é única.

  1. Conclusão

O SUS e o SNS não são apenas políticas públicas: são instituições civilizatórias que expressam um compromisso jurídico e ético com a saúde como direito humano. Eles oferecem medicina de ponta gratuitamente, inclusive a migrantes, refugiados e populações vulneráveis.

Mesmo diante de falhas estruturais, filas, escassez e judicialização, persistem como modelos concretos de proteção social que colocam a vida humana acima da lógica de mercado.

Defender esses sistemas é afirmar, em linguagem jurídica, que dignidade não tem passaporte e que saúde é um bem jurídico indisponível.

Material Consultado

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS. Registro Brasileiro de Transplantes: 2024. São Paulo: ABTO, 2024.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde. Diário Oficial da União, Brasília, 1990.

BRASIL. Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017. Institui a Lei de Migração. Diário Oficial da União, Brasília, 2017.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Judicialização da Saúde no Brasil: relatório 2024. Brasília: CNJ, 2024.

INSTITUTO MIGRATION POLICY. Brazil: Immigrant and Refugee Profile, 2024. Washington, DC: MPI, 2024.

PORTUGAL. Constituição da República Portuguesa de 1976.

PORTUGAL. Decreto-Lei n.º 135/2013. Diário da República, Lisboa, 2013.

PORTUGAL. Portaria n.º 25.360/2001. Diário da República, Lisboa, 2001.

SERVIÇO DE ESTRANGEIROS E FRONTEIRAS (SEF). Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo 2023–2024. Lisboa: SEF, 2024.

INFARMED. Avaliação de Tecnologias em Saúde 2024. Lisboa: INFARMED, 2024.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Relatório Mundial da Saúde 2023. Genebra: OMS, 2023.

Autora: Dra. Vera Lucia Gomes de Andrade – Médica, aposentada como Epidemiologista da Organização Mundial da Saúde (OMS) e Sanitarista da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro (SESRJ). Especializada em Saúde Pública (RQE 48531), Hansenologia (RQE 41306) e Doenças Infecto-Parasitárias (RQE 694), com mestrado e doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz. Membro do Conselho Nacional dos Peritos Judiciais da República Federativa do Brasil – Telefone: (21) 985 31 31 34 – contato@periciasgomesdeandrade.com.br

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