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A recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, proferida no julgamento do AREsp nº 2.627.641/DF, reacendeu um debate central no Direito à Saúde. Até que ponto o rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) limita a cobertura de tratamentos pelos planos de saúde? No caso em questão, uma paciente diagnosticada com neoplasia maligna de apêndice teve negado pela operadora Assefaz o custeio do medicamento Lonsurf (Trifluridina/Tipiracil), sob o argumento de que não constava no rol da ANS e tampouco havia previsão contratual expressa. O STJ, em decisão alinhada à sua jurisprudência consolidada, afastou essa tese restritiva, reafirmando que o rol da ANS tem caráter exemplificativo e serve como referência mínima, não como barreira intransponível ao direito do paciente.
A corte apoiou-se em precedentes robustos, como o REsp nº 1.733.013/SP, que trata do caráter exemplificativo do rol; o REsp nº 1.886.929/SP, que reconhece a cobertura de medicamentos off-label, e o REsp nº 1.949.270/SP, que reforça a obrigação de custeio em tratamentos oncológicos respaldados por evidência técnica. Em outras palavras, o STJ reafirmou que a saúde do beneficiário não pode ser sacrificada em nome de uma interpretação literal e restritiva das normas administrativas, especialmente em cenários de alta complexidade como o tratamento de câncer.
Essa posição é coerente com o próprio fundamento constitucional do direito à saúde, previsto no art. 196 da Constituição, que o coloca como direito de todos e dever do Estado, estendendo tal proteção aos contratos de assistência privada. Limitar a cobertura apenas ao que está no rol significaria ignorar o dinamismo da ciência médica e criar um vácuo entre as inovações terapêuticas e o acesso efetivo dos pacientes, o que, na prática, pode representar risco de morte ou agravamento irreversível da doença.
No entanto, o julgamento também traz um recorte importante sobre responsabilidade civil. Apesar de reconhecer a obrigatoriedade de custeio do medicamento, o STJ afastou a condenação por danos morais. Segundo o relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, a negativa da operadora baseou-se em “dúvida jurídica razoável” quanto à interpretação contratual, o que afasta a presunção de abusividade. Essa ponderação é relevante porque delimita os contornos da reparação moral, exigindo prova concreta de abalo à dignidade ou sofrimento efetivo, e não apenas a existência da recusa em si.
Sob a perspectiva prática, essa decisão sinaliza dois caminhos claros. Primeiro, para os pacientes e seus advogados, reafirma-se a possibilidade de buscar na via judicial a cobertura de tratamentos oncológicos indicados por médico, ainda que fora do rol da ANS ou utilizados de forma diversa da bula. Segundo, para as operadoras, evidencia-se que o simples ato de negar cobertura não implica automaticamente em indenização por dano moral, desde que haja embasamento jurídico plausível e a recusa não represente comportamento abusivo.
No caso concreto, a paciente, em luta contra um tipo raro e agressivo de câncer, dependia do Lonsurf como última linha de tratamento. O medicamento, embora sem previsão no rol da ANS, possuía respaldo científico e indicação expressa do oncologista, fundamentada em diretrizes internacionais. A negativa inicial da operadora, ainda que juridicamente fundamentada segundo seu entendimento, impôs à paciente o ônus de recorrer ao Judiciário, que, felizmente, reconheceu a urgência e a legitimidade da prescrição. É emblemático que, se a interpretação restritiva tivesse prevalecido, a paciente poderia ter perdido um tempo precioso em um tratamento de caráter vital.
Consagração do direito à vida
Portanto, essa decisão do STJ não é apenas mais um capítulo na disputa entre consumidores e operadoras de planos de saúde; ela é um marco que reafirma a primazia do direito à vida e à saúde sobre limitações burocráticas. O entendimento de que o rol da ANS é referência mínima e não teto absoluto é essencial para garantir que a medicina continue sendo guiada pela ciência e pela ética, e não por tabelas e cláusulas redigidas à margem da realidade clínica.
Ao mesmo tempo, a exigência de comprovação efetiva de dano moral para fins indenizatórios traz mais segurança jurídica e evita a banalização dessa compensação. Em um cenário de litígios crescentes na saúde suplementar, decisões equilibradas como essa reforçam a necessidade de ponderar direitos, proteger pacientes e estabelecer parâmetros claros para a atuação de todos os envolvidos.
O julgamento do AREsp nº 2.627.641/DF ecoa uma mensagem inequívoca: o contrato de plano de saúde não pode se sobrepor à prescrição médica tecnicamente embasada, especialmente no combate ao câncer. A interpretação que prestigia a proteção integral do paciente é não apenas juridicamente correta, mas humanamente necessária. E, enquanto advogados, precisamos continuar vigilantes para que essa compreensão não se perca em meio às pressões econômicas do setor.
Fonte: CONJUR – matéria de autoria do advogado Rafael Ciaralo