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A Constituição de 1988 garante a proteção à honra e a dignidade dos cidadãos e assegura o direito a indenização em casos de abalo moral (artigo 5o, inciso V e X).
Além disso, quanto à violação do dever jurídico de não lesar outrem (neminem laedere), segundo o Código Civil brasileiro, configura ato ilícito e acarreta a obrigação de reparar, consoante os seus artigos 186 e 927.
Aliás, o mesmo código, em seu artigo 737 — no que se refere ao transporte de pessoas —, estabelece de forma precisa que “O transportador está sujeito aos horários e itinerários previstos, sob pena de responder por perdas e danos, salvo motivo de força maior”.
Dito isso, porém, sabemos que sempre foi árdua a discussão em torno das balizas que determinam o reconhecimento do dano moral em qualquer evento cotidiano, sobretudo porque é difícil mensurar o sofrimento humano, não quantificável, ao contrário do dano material clássico, cuja liquidação deriva de um prejuízo mensurável financeiramente.
No âmbito do transporte aéreo a discussão assume envergadura, seja porque as falhas de pontualidade das prestadoras de serviço são notáveis em nosso país, o que potencializa, por si, os conflitos, seja porque em 2020 adveio a inclusão do artigo 251-A ao Código Brasileiro de Aeronáutica, com este teor:
“A indenização por dano extrapatrimonial em decorrência de falha na execução do contrato de transporte fica condicionada à demonstração da efetiva ocorrência do prejuízo e de sua extensão pelo passageiro ou pelo expedidor ou destinatário de carga.”
Nessa época, aliás, até um pouco antes da dita alteração do Código Brasileiro de Aeronáutica, adveio no Superior Tribunal de Justiça a revisão do entendimento jurisprudencial que fixava o dano moral de forma presumida em casos de cancelamento ou atraso de voo (aqui estamos considerando apenas os eventos causados por falha da empresa, seja por problemas de seus equipamentos ou de seu pessoal, sem considerar os fatores externos que excluem a responsabilidade, como clima), o qual passou a ser visto com uma lupa de critérios, conforme se verifica no julgado abaixo, da lavra da ministra Nancy Andrighi.
“DIREITO DO CONSUMIDOR E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COMPENSAÇÃO DE DANOS MORAIS. CANCELAMENTO DE VOO DOMÉSTICO. DANO MORAL NÃO CONFIGURADO.
- Ação de compensação de danos morais, tendo em vista falha na prestação de serviços aéreos, decorrentes de cancelamento de voo doméstico.
- Ação ajuizada em 03/12/2015. Recurso especial concluso ao gabinete em 17/07/2018. Julgamento: CPC/2015.
- O propósito recursal é definir se a companhia aérea recorrida deve ser condenada a compensar os danos morais supostamente sofridos pelo recorrente, em razão de cancelamento de voo doméstico.
- Na específica hipótese de atraso ou cancelamento de voo operado por companhia aérea, não se vislumbra que o dano moral possa ser presumido em decorrência da mera demora e eventual desconforto (grifei), aflição e transtornos suportados pelo passageiro. Isso porque vários outros fatores devem ser considerados a fim de que se possa investigar acerca da real ocorrência do dano moral, exigindo-se, por conseguinte, a prova, por parte do passageiro, da lesão extrapatrimonial sofrida.
- Sem dúvida, as circunstâncias que envolvem o caso concreto servirão de baliza para a possível comprovação e a consequente constatação da ocorrência do dano moral. A exemplo, pode-se citar particularidades a serem observadas: i) a averiguação acerca do tempo que se levou para a solução do problema, isto é, a real duração do atraso; ii) se a companhia aérea ofertou alternativas para melhor atender aos passageiros; iii) se foram prestadas a tempo e modo informações claras e precisas por parte da companhia aérea a fim de amenizar os desconfortos inerentes à ocasião; iv) se foi oferecido suporte material (alimentação, hospedagem, etc.) quando o atraso for considerável; v) se o passageiro, devido ao atraso da aeronave, acabou por perder compromisso inadiável no destino, dentre outros (grifei).
- Na hipótese, não foi invocado nenhum fato extraordinário que tenha ofendido o âmago da personalidade do recorrente. Via de consequência, não há como se falar em abalo moral indenizável.
- Recurso especial conhecido e não provido, com majoração de honorários.” (REsp nº 1.796.716/MG, relatora ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 27/8/2019, DJe de 29/8/2019)
O assunto nos obriga à reflexão, sob vários prismas.
Primeiramente, é bastante razoável considerar, como no item “4” da ementa do julgado acima, que é destoante do conceito de responsabilidade civil vincular determinado evento à ocorrência de dano moral, de forma automática, sem a análise das consequências do caso concreto. Assim acontece, por exemplo, nos acidentes de trânsito, pois nem sempre a lesão física causa abalo anímico à vítima, o que demanda uma análise da sua graduação, que pode ir de um simples arranhão ao evento morte.
Diversos exemplos poderiam ser citados, mas o que importa mencionar é que nos últimos anos a percepção de ocorrência do dano moral no caso específico de transporte aéreo oriundo de falha da companhia migrou da presunção absoluta – que destoa do conceito da responsabilidade civil – para um nível de exigência que em alguns casos ignora balizas típicas do instituto do dano moral em si.
Quatro cenários
Vejam o artigo 27 da Resolução 400 da Anac [1] , por exemplo. As previsões ali contidas estipulam regras mínimas de humanidade para uma pessoa vítima de inadimplemento do transportador aéreo, que em geral envolve horas de envolvimento pelo passageiro em trânsito, com translado a aeroporto, espera por embarque e voo, ou seja, é por si desgastante. É digno entender que uma empresa, quando se nega a prestar a ajuda ali prevista, não atua de forma a perturbar e psique do passageiro? A ausência de provas de entrega dos ditos vouchers (algo que só a companhia pode trazer ao processo) é elemento fortíssimo de descaso e de irresponsabilidade do prestador de serviço, com reflexo psicológico.
Além disso, um ponto é importantíssimo. Quando seria razoável considerar, pelo tempo decorrido entre o cancelamento/atraso e a reacomodação, que a situação pode ensejar abalo anímico? Quando um compromisso é inadiável? A pergunta é relevantíssima, e é aqui que residem os maiores imbróglios, pois temos, em geral, quatro cenários possíveis. A saber:
- a) atrasos de curto tempo, inferiores a quatro horas, que de forma concreta não afetam uma rotina preestabelecida do passageiro;
- b) atrasos de curto tempo, inferiores a quatro horas, que irradiam perdas de compromissos incomuns do passageiro;
- c) atrasos longos, superiores a quatro horas, que de forma concreta não afetam uma rotina preestabelecida do passageiro;
- d) atrasos longos, superiores a quatro horas, que irradiam perdas de compromissos incomuns do passageiro.
Exemplificando o item “a”, pense num passageiro em retorno a seu lar num domingo, com voo previsto para chegar às 14:00 ao destino, mas que só chega às 18:00 em razão de manutenção da aeronave. Mesmo assim, a alimentação foi oferecida e o consumidor não demonstra, nem sequer de forma documental, que algum compromisso incomum do dia foi afetado, ou seja, nada fora de uma rotina básica. Não é crível que uma situação do tipo possa ferir o sentimento pessoal, embora possa eventualmente ensejar pedido de abatimento proporcional do valor da passagem, conforme artigo 20, III, do CDC, já que o serviço contratado não foi entregue conforme pactuado.
Todavia, nos itens “b” e “d”, temos situações que do ponto de vista do dano moral não podem ser ignoradas, e que consubstanciam a perda ou readequação de compromissos profissionais, se devidamente demonstrados nos autos, ou, em caso de viagens, a perda de expectativa de lazer.
A readequação do trabalho é consequência desagradabilíssima, pois obriga o passageiro a utilizar tempo reorganizando seus afazeres, e afeta ainda sua credibilidade perante clientes ou terceiros, já que os compromissos têm que ser reagendados. Aqui, porém, temos notado que se passou a exigir, como premissa para o dano moral, que o compromisso seja totalmente inadiável, como uma reunião que não comporta remarcação. Ora, as alterações comprovadas nos autos, envolvendo atendimento a clientes ou parceiros, não podem ser negadas como elemento caracterizador de dano moral, ainda que o consumidor possa remarcar para outra data.
Já a perda de lazer em viagem (passeio contratado, tarde em resort) é algo que também transcende o simples incômodo, pois uma pessoa que sai da sua rotina cria expectativa de descanso, perturbada pelo inadimplemento das empresas aéreas nestes casos.
Restrições cada vez maiores
Por fim, em relação aos atrasos longos, que de forma concreta não afetam uma rotina preestabelecida, como no item “c”, exemplo clássico é o retorno para casa após estadia noutra localidade, previsto para ocorrer um sábado, mas que acaba postergado para o domingo após súbito cancelamento do voo. Ora, a necessidade de sair do aeroporto, realizar todo o trâmite para um hotel, ainda que pago em alguns casos pela companhia, e retorno no dia seguinte, é situação demasiadamente desagradável e que ninguém gostaria de passar. O pernoite forçado, portanto, extravasa a razoabilidade, e se traduz como parâmetro objetivo justo para fixar o abalo moral pela própria ocorrência deste tipo de evento.
No entanto, temos visto cotidianamente restrições cada vez maiores ao reconhecimento do dano moral, mesmo em nuanças críticas de atrasos superiores a 24 horas, com reagendamento de compromissos de trabalho ou perdas de diária de hotel em destinos paradisíacos.
A jurisprudência tem um papel importante como antídoto a pretensões oportunistas, mas deveríamos refletir se o abuso de tais indivíduos não seria coibido tolhendo apenas os pedidos de indenização por atrasos curtos sem reflexos na agenda ou compromissos do passageiro.
Para atrasos que produzem reflexos, seja profissionais ou de lazer, ou situações de maior demora, o efeito da improcedência das ações poderá ser outro, ou seja, motivar as transportadoras a um maior descaso. Isso sem falar, é claro, da ausência de isonomia em face de tantas outras situações diárias que têm sido reconhecidas como passíveis de indenização por dano moral.
[1] Art. 27. A assistência material consiste em satisfazer as necessidades do passageiro e deverá ser oferecida gratuitamente pelo transportador, conforme o tempo de espera, ainda que os passageiros estejam a bordo da aeronave com portas abertas, nos seguintes termos:
I – superior a 1 (uma) hora: facilidades de comunicação;
II – superior a 2 (duas) horas: alimentação, de acordo com o horário, por meio do fornecimento de refeição ou de voucher individual; e
III – superior a 4 (quatro) horas: serviço de hospedagem, em caso de pernoite, e traslado de ida e volta.
Fonte: CONJUR – matéria do advogado Guilherme Heusi